O que nutre a cultura do estupro?
Uma cultura do estupro não pode se manter numa sociedade evoluída em que o ser humano pensa, respeita e sente empatia pelo outro. A não ser que ao invés de evoluir tenhamos involuído. Involuímos para ser apenas “bicho” que segue o instinto sexual do cérebro reptiliano sem a capacidade de usar as partes mais nobres do cérebro como a razão e a emoção. A razão nos dá a capacidade de pensar, refletir, avaliar e elaborar nossos comportamentos éticos e morais. As emoções por sua vez, coordenadas pelo nosso extraordinário sistema límbico, nos dão a capacidade de sentir e empatizar com o outro. Tanto a capacidade para pensar como para sentir devem estar em sintonia com os instintos do cérebro mais primitivo. Isso tem muito a ver com o comportamento sexual que se assume e se expressa. Liberar o instinto sexual sem permeá-lo pelo pensamento e o sentimento é ser “bicho” que se alimenta de uma “comida” qualquer só para saciar a fome de seu instinto. Para isso o outro é apenas objeto de uso para ser logo abandonado, descartado. Parece um Neandertal que abate sua caça para matar sua fome e depois se desfaz da carcaça. O lamentável estupro coletivo, do qual foi vítima a adolescente de dezesseis anos em uma comunidade da Zona Oeste do Rio de Janeiro, passa exatamente essa impressão de que naquele ato apenas o “bicho” se fez presente.
Penso que boa parte da cultura do estupro se mantém nutrida pela rentável indústria pornográfica. Nela ocorre um doutrinamento de um comportamento sexual do uso e da subjugação do outro. Vende-se a ideia do outro como mera mercadoria, objeto, pedaço de “comida” para saciar a “fome” por sexo.
É com tristeza que se percebe que o uso da pornografia está banalizado não apenas nos ambientes de prostituição, mas está envenenando os mais variados leitos conjugais.
É aquele casal em que de tanto ele insistir na pornografia, ela acaba consentindo que ele assista enquanto ela se vira para o lado oposto para dormir. Não importa o quanto ela lhe diga que aquilo é “brochante” para ela e que ao invés de estimular mata o seu desejo. Ela se frustrou em suas tentativas em dizer-lhe que o seu olhar romântico, palavras de carinho são muito mais estimulantes, mas para ele a pornografia é inegociável. Cansada ela coloca uma viseira para não ver as cenas na TV, apenas pede ao marido para que abaixe o volume, pois não suporta ouvir aqueles gemidos emitidos no vídeo. Enquanto ela tenta dormir ele se estimula e se nutre daquela doutrinação venenosa.
Ou ainda, aquele outro casal em que a esposa acorda seu marido de madrugada, e insiste que vá com ela até a sala para terem o ato sexual, mas claro só o conseguem na presença de imagens pornográficas. Dessa forma, em ambos os casos, seguem para um distanciamento sexual cada vez maior, sem se darem conta disso.
Ainda há outros casais que buscam por ajuda terapêutica e encontram em alguns terapeutas sexuais a prescrição da pornografia como tarefa para estímulo sexual do casal. Até podem encontrar um estímulo momentâneo, mas haverá altas chances do desencontro retornar logo mais adiante, pelo simples fato de não encontrarem na pornografia os elementos do verdadeiro encontro. Melhor buscar por um terapeuta que trate da relação e não apenas da junção dos corpos.
Infelizmente a pornografia se estabelece como natural, normal, algo que “todo mundo usa”. Nem se percebe que mina-se gradativamente a capacidade de expressar-se sexualmente com carinho e ternura.
Para um comportamento sexual em que a ternura é elemento principal a doutrinação é outra. Nela se aprende que a atração está permeada pelo carinho, amor, respeito e empatia num encontro entre duas pessoas comprometidas que se olham e se veem, se ouvem e se escutam. Onde o outro, seus desejos e incômodos são levados em conta. Para isso é preciso debruçar-se, aprender, conhecer do outro quem é, do que gosta e do que não gosta. Do contrário a cultura do estupro pode estar implantada até mesmo nos leitos considerados “santos”. Como tenho visto na vivência de alguns casais em atendimento, mesmo cristãos, que se “utilizam” sexualmente do cônjuge como se fosse o direito de uma propriedade adquirida em que pode-se “usar” o outro quando e como quiser pelo simples fato de se estar casado. Caso o outro não consentir terá justificada alguma traição se “for ter fora de casa o que não tem dentro”. Claro que nesse tipo de relacionamento sexual, traições são frequentes e a culpabilização geralmente recai sobre o “cônjuge objeto” que é acusado de não estar disponível o suficiente.
Muito já se tem criticado buscando incrementar as reflexões, mas tenho a sensação de que muito do que se tem dito, apesar de novas argumentações, ainda é mais do mesmo, ou seja, continuamos uma sociedade machista e encharcada pela cultura do estupro, tanto nas ruas como dentro das casas e mesmo dentro das igrejas. E a ideia não é promover o femismo (que prega a supremacia da mulher em relação ao homem), pois é apenas o outro lado da mesma moeda que acaba comprando a mesma coisa, ou seja, o uso, a subjugação do outro e o desencontro nos relacionamentos.
Para evoluirmos e combatermos a cultura do estupro é preciso seguir na contramão do que a pornografia nos doutrina. O trabalho envolve evoluir em nossos relacionamentos estabelecendo mais compreensão, escuta, empatia, respeito, ética, moral, afeto, carinho, amor e, sobretudo, mais ternura.